denuncie o fascismo, colabore com o bem estar social
Romantismo e Imaginação
eliane colchete
A epistemologia característica de
entornos que abrangem da época classicista (pelo parâmetro
francês, séc . XVII e XVIII) ao cientificismo positivista (meios do
séc. XIX) e ainda corrente em algumas tendências contemporâneas,
corresponde a uma imagem do homem como faculdade de representação
do real. Ela opõe, por um lado a imaginação como simples fantasia;
por outro lado o entendimento como inteligência da objetividade.
Pode ser modulada pelo empirismo ou pelo racionalismo, mas também pela inteligibilidade da doutrina kantiana das faculdades. É bem característica do estrutural-funcionalismo da metade inicial do século XX, nesse caso, o símbolo na cultura, como na religião ou na arte, também se torna dotado de um valor de representação, ainda que ele não seja um signo denotativo. Assim, mesmo que a cultura seja o veículo do símbolo, a objetividade se mantem como uma noção oposta.
Pode ser modulada pelo empirismo ou pelo racionalismo, mas também pela inteligibilidade da doutrina kantiana das faculdades. É bem característica do estrutural-funcionalismo da metade inicial do século XX, nesse caso, o símbolo na cultura, como na religião ou na arte, também se torna dotado de um valor de representação, ainda que ele não seja um signo denotativo. Assim, mesmo que a cultura seja o veículo do símbolo, a objetividade se mantem como uma noção oposta.
O “raciocínio de imaginação”
do período tardo medieval e renascentista (séc. XII ao XV), o Romantismo
pós-kantiano (inícios do século XIX) e o pós-modernismo teórico,
correspondem, inversamente à precedente, a uma epistemologia não representativa. Nesta o pensamento, a imaginação ou o inconsciente,
atuam como produção de linguagens autônomas e em que são
constituídas quaisquer afirmações de fato pela consciência. Nessa
epistemologia que designaremos “intellectualiter”
por oposição ao “transcendental”,
nós não falamos em termos de “decifrar um símbolo”, como
falava Cassirer para conceituar o trabalho do historiador ou do
estudioso de culturas. Nós só podemos decifrar uma linguagem, um
sistema simbólico no qual o símbolo específico tem lugar.
Não há uma razão a priori
objetiva além dos sistemas simbólicos, o que se torna a tarefa
conceituar mais geralmente é o inconsciente como a instância de
produção e reprodução de sistemas. Estes não são “ideais”,
opostas à materialidade, como tampouco o inconsciente é oposto ao
cérebro/corporeidade na sua interação prática, social, histórica.
Não há oposição matéria/espírito.
A
experiência de cada um, o artista, o cientista, o sujeito da
cultura, problematiza os sistemas simbólicos por que a cada vez que
atualiza uma dessas linguagens, está situando-a numa imbricação
singular, circunstancial, misturando-a a outros sistemas simbólicos,
etc. Não podemos reduzir nem à obra individual, nem ao “período”
em que certos sistemas são vigentes, o que de fato ocorre na
complexidade do devir, mas temos que estudar esses níveis de forma
autônoma. Por esse e outros motivos, não considero por ora a
crítica que se tornou habitual à conservação da terminologia dos
“estilos de época”, mas desde já sublinho que não os tenho
tratado como chavões, e sim como problemáticas historicamente
delimitáveis.
O
“raciocínio de imaginação” é algo recalcado em história das
ciências e em epistemologia, tendo sido porém bastante salientado
por Alain de Libera ( A filosofia medieval, ed. Zahar),
e estando associável à exposição de Bréhier (Histoire
de la philosophie, antiquité e moyen age, ed. Quadrige/Puf). Consistia na livre projeção de hipóteses lógico matemáticas, que não necessitavam provar-se compatíveis com a realidade, mas sim ser internamente coerentes.
Com
essa denominação de raciocínio “secundum imaginationem”, se manifesta no
cenário específico na transição do gótico ao Renascimento, mas
permanece referenciável em alguns contextos das ciências na
modernidade sem conexão explicitada ao momento feudal, e aqui estou
procedendo a sua conexão epistemológica com o pós-modernismo e o
Romantismo. Vamos observar essa temática epistêmica com maior
minúcia, mais à frente. Por ora, sendo importante notar que na
concomitância ao “raciocínio de imaginação”, há uma estética
do imaginário própria a esse período de transição entre o medievo tardio e a renascença.
Quando
ocorre ruptura em relação ao realismo classicista exemplificado por
Dancour e Lesage,
o
que surge na transição ao romantismo é uma liberação do imaginário que retoma expressamente
essa estética, sendo até explicitamente designada “romance
gótico”, iniciando-se com Walpole. Em seguida, ela desdobra-se no
Fantástico, estilo que integra o Romantismo, portanto, já na
imanência da sua valorização da Idade Média.
II
-
"The
pillars of earth",
de Ken Follet, está editado em inglês pela New American Libray, uma
seção da Penguin Books, num formato pocket. Está traduzido
em português. Nessa edição da Penguin, assinala-se copyright de
1989, mesmo ano do copyrigt da publicação de Libera, o que mostra
uma tendência bem afirmável na atualidade, à revalorização dos
estudos medievais. O texto de Follet está rotulado na capa como “a
novel”,
o que podemos traduzir geralmente por “ficção” ou
especificamente “romance”.
O romance de Follet tematiza a
irrupção da estética gótica em literatura, que aqui estamos
colocando num paralelo à epistemologia por que se trata em ambos os
casos, da valorização da Imaginação. Estrategicamente, num outro
trecho, é mesmo do que introduz o “raciocínio de imaginação”
aquilo de que se trata numa cena que a nossos propósitos se torna
bastante esclarecedora.
A irrupção do estilo gótico em
estética incia-se no século XII, mas afirma-se ainda paralela à
revolução do cálculo e ao nominalismo no século XIV. O gótico
precede o Renascimento e assinala o limite, como o apogeu, do período
medieval, mas ao norte dos Alpes perdura até o quinhentos e
contamina os motivos de todo esse período, como na miniatura de Jean
Fouquet, no século XV, a propósito da construção do templo de
Jerusalém que é na verdade a de uma igreja gótica.
Em
artes o limite do período medieval costuma ser demarcado por Pisano, no século XIV, cuja obra gótica é interceptada pela
influência de Giotto que já introduz princípios renascentistas.
Conforme Upjohn, Wingert e Mahler (História
da arte, livraria Bertrand),
os medalhões da porta Sul do batistério de Florença são
exemplo do gótico de Pisano. Não obstante já mostrarem
influência de Giotto, conservam-se similares aos da Catedral de
Amiens (1220/80), assim como a Chartres e Notre Dame de Paris foram
acrescentados motivos nesse estilo. Em geral o gótico é a irrupção de formas possibilitadas por maior conhecimento em arquitetura e desenvolvimento das artes, de modo que as catedrais se tornam muito altas, as cidades competindo pela maior altura de suas construções novas. Os cidadãos cooperavam ativamente na construção das igrejas, que permitiam intensa claridade em seu interior, com incremento dos vitrais.
A
estória de Follet é encenada no século XII (entre 1123 e 1145).
Apresenta Jack, o jovem protagonista, cuja carreira como arquiteto,
que havia começado como aprendiz do seu padrasto, demarca a inovação
do gótico em cuja revolução ele participa, assinalando a sua
inovação em relação à arte do seu mestre. Jack não apenas inova
estilisticamente. Ele é um arquiteto no sentido mais próximo ao
atual do termo, enquanto Tom, o padastro, era um homem de afazeres,
como na oposição do agrimensor ao iniciado em ciências
matemáticas.
O
jovem completa uma trajetória que havia sido apenas sonhada pelo
padastro, um homem pobre que só pôde lidar com residências
familiares e igrejas interioranas: chegar a dedicar-se à construção
de catedrais – que se tornam o referencial na arte gótica, de modo
que mesmo as igrejas pequenas e distantes podem agora se projetar
como poesias da mente de um construtor talentoso.
Inicialmente, vamos focalizar o trecho em que se trata de estética.
Trata-se da cena em que Jack torna
explícita a côrte a Aliena – sua noiva na estória, e com quem
depois ele se casa – ainda que esse seu gesto a princípio
permaneça enigmático para ela.
O nome “Aliena” parece signo
ironicamente motivado. É referencial nesse entorno medieval conforme
registra de Libera a perífrase terra aliena (terra
do exílio) que designa Paris em
relação à cristandade, como cidade que está concentrando o novo
meio institucional da cultura , as “escolas catedrais”
(capitulares ou episcopais) que desde o século XII substituem as
escolas monásticas onde se era obrigado pela regra de obediência, e
de que nascem as universidades - isto é, como lugar para onde estão
vindo os estudiosos cristãos de todas as partes da Europa. Mas de
fato, se o romance tem um componente de infixação, com
deslocamentos e exílios, ele é referencial ao ambiente anglo-saxão.
Jack é filho de um injustiçado
jongleur, e ele mesmo
exibe esse talento poético aplicado, porém, à arte da composição
de estórias conforme o estilo até aí tradicional, em forma de
poema. Após o incidente da côrte a Aliena, Jack converte-se arte da
composição de romances.
Ao
longo de seus encontros como amigo de Aliena, ele conta à jovem
aquele tipo de estórias. Nessa cena, Aliena resolve ler “O
Romance de Alexandre”, em
retribuição às narrativas dele, o que o motiva subsequentemente à
criação nesse novo gênero.
Carpeaux (História da
literatura ocidental, ec. Alhambra, vol. 1) condensou
a história da penetração da tradução latina do que tratou pelo
epíteto de “romance fantástico de Alexandre Magno”,
romance bizantino do
Pseudo-Kallisthenes. Na Idade Média é conhecida a tradução de
Julius Valerius, com versões em latim (Leon de Nápoles; Gualterius
de Châtilon). A versão de Lambert le Tort e Alexandre de Bernay,
designada Roman d'Alexandre
cristalizou a forma popularizada desde o século XII. Carpeaux
registrou também várias versões nacionais no território europeu,
e salientou particularmente a importância da tradução tcheca da
versão de Châtillon no processo literário desse país.
Entre as estórias de Jack e o
romance lido por Aliena, as temáticas citadas pelo narrador resumem
os ciclos da literatura medieval, acrescida da inserção de quadros
históricos mais ou menos recentes: Jack absorve-se no ciclo
carolíngeo, nas aventuras de Guilherme de Orange e os Sarracenos,
enquanto o romance de Aliena seria atribuível ao ciclo de Alexandre
Magno. Mas a forma é que está perfeitamente contrastada.
As
estórias de Jack, como assinalei são apresentadas como poemas, por
vezes tão longos que precisam de mais que uma tarde para serem
contados. São realistas e feitos para despertar emoções
logicamente condizentes com os acontecimentos, isto é, são cenas
convencionais para um público que deve recebe-las ingenuamente, sem
questionar as regras prescritas dos papéis sociais, aceitando-as
como natureza, sem jamais perscrutar os reais sentimentos ou traços
de personalidade além das aparências desse comportamento
protocolar.
Inversamente, conforme o narrador,
“Aliena's romance featured love affairs and magic”.
O narrador não se demora a explicar as particularidades do conteúdo,
mas as da forma ele desenvolve num paralelismo bastante interessante,
por meio da descrição do romance que Jack compõe evidentemente
baseando-se no modelo daquele que ouviu de Aliena – sem esquecer
que a inserção do gênero romance está concomitante ao início do
“romance” afetivo dos jovens, tudo ocorrendo dentro do romance
The pillars of Earth,
que estamos lendo, de Follet.
No
encontro seguinte Jack inicia a narrativa do seu romance e Aliena
torna-se sua ouvinte. A meu ver torna-se claro que a estória de Jack
contém muito da própria biografia, como um simbolismo do seu papel
de continuador do que se inicia antes dele.
Esse papel é que se torna
importante considerar, pois habitualmente o período tardo-medieval é
considerado uma ruptura sem precedentes com o anterior, devido à
penetração dos títulos clássicos antigos e à situação mais
estabilizada do poder eclesiástico, não obstante começar agora o
novo sentido do conflito intra-europeu, desencadeando-se o processo
das formações nacionais. Atualmente, os estudos medievais enfatizam
as lacunas dos nossos conhecimentos e tentam evitar o estereótipo da
“feudalidade” – na verdade, a posição do rei é bastante
enfatizada nesse romance de Follet.
Ellie
Faurie destaca, inversamente, a coincidência do gótico com a
autonomia das comunas e sua nova importância no quadro social da
Idade Média, enquanto no plano da política oficial trata-se da
impotência das aspirações nacionalistas – quadro histórico
simetricamente inverso ao que ocorrerá do quinhentos em diante. Ao
que me parece, esse problema se torna menos complicado se adotarmos o
princípio da autonomia das regiões europeias, em vez de perseguir
um rótulo histórico para feudalismo em geral. Além disso, como
Bakhtin acentuou no seu estudo de Rabelais, a Idade Média não é um
contexto cultural homogêneo, sendo percorrido por dois ambientes
culturais bem distintos, o popular e o eclesiástico-erudito.
O protagonista de Follet comunica
uma impressão de continuidade e ampliação das expectativas
precedentes, justamente nesse nível das pessoas comuns que atuam
transitivamente, como trabalhadores e população integrante, entre
cidadezinhas e côrtes, intrigas palacianas e instituição
eclesiástica. O período resulta apresentado como um processo
ascendente, em vias de consolidar-se, que une as gerações.
Aqui não seria nosso assunto a
história social da idade média, mas sim notar que é esse elemento
transitivo que me parece interessar sobremodo o medievalismo e o
folclore à época do romantismo, posto que nele concentra-se o
processo de fusão cultural de clássico, bárbaro e cristão, mas de
tal modo que não é a crônica do seu confronto o que importa ao
historiador social romântico, e sim precisamente o elemento de
ligação que Jack representa como o sujeito da cultura e da língua
provenientes dessa mistura. Por outro lado, a esse estudioso na
época romântica, enquanto pioneiro em “ciências do espírito”,
interessa reconstituir a originalidade de cada procedência
cultural autônoma, do que resultou a cisão de cristianismo e
classicismo que antes, como na era cartesiana, estavam homogeneizados
pela filosofia.
O romance de Jack conta como um
jovem escudeiro herda do seu cavalheiro a tarefa de viajar ao leste
longínquo e reaver uma videira em que crescem rubis. O fato de ser o
jovem quem tem que se haver com a tarefa, de fato é uma inovação
no esquema do gênero, como salientado pelo narrador, pois esse herói
é sem dinheiro, inexperiente, praticamente nada tendo que o pudesse
distinguir. Nessas condições, seu grande amor pela filha do rei se
conserva inconfessável. As anomalias continuam posto que o jovem
perde batalha após batalha em vez de consagrar-se por tremendos
danos causados aos inimigos por meio da espada mágica do cavalheiro,
como seria comum nesses relatos. Em vez disso, o herói quase sempre
escapa por um triz, sendo objeto de mofa por parte dos cortesões.
Ele consegue retornar com a videira
mágica, mas, como poderíamos associar a Kirkegaard, não obtém a
mão da princesa – nesse ínterim, Jack performatiza com Aliena a
côrte do escudeiro à princesa, e é por isso que ela não consegue
decidir a princípio se ele a beijou realmente ou apenas desempenhou
o papel do escudeiro de sua estória, situação típíca da
subjetividade romântica. A narrativa fica indeterminada, pois o
escudeiro jura que irá casar com a princesa que lhe foi negada pelo
rei, mas Jack não produz esse desfecho: “I haven't
thought of it yet”, ele
responde a uma Aliena genuinamente interessada no relato cujos
desvios parecem ter produzido um efeito mais notável que o
convencional, ainda redobrados pela sugestão, inevitável mas
subliminar, da convergência dos destinos dos personagens da estória
e dos personagens do romance que estamos lendo, ela mesma e Jack.
As características do romance
mágico medieval são estritamente convergentes com a estética
romanesca do romantismo e com o que para alguns como Noel, é a
antítese do romance, ainda que gênero romântico, o fantástico.
Pois, no romance algo é comunicado na forma da estória, enquanto no
fantástico a narrativa é absurda ou não tem desfecho pois não se
conhece o destino do herói, como no conto de Hoffman, “La
iglesia de los jesuítas de G...”.
Em todo caso, aqui é a imaginação
a transversal, como o que concede a autonomia do gênero, pois não
há qualquer justificativa plausível ou sequer necessária para o
fato da videira produzir rubis – por isso o “fantástico” foi
também designado “mágico”. Esse tipo de motivo, com seu apelo
popularesco, é pervasivo em Hoffman, por exemplo no “Zacharias”,
onde vemos uma fada inverter a percepção normal das pessoas na
atribuição de um ato ao seu sujeito.
É também o que impede que a
literatura romântica, mesmo sendo por vezes tão modelada por
pessoas reais quanto Eça de Queiroz pretendeu que o realismo devia
ser, descambe para o didaticismo do “tipo”. Generalização que
Eça no entanto supunha tão desejável que, por outro lado, isso
autorizava a crítica do romantismo como uma mitificação da pessoa
através do halo do personagem construído como lendário, e propunha
o realismo como um trabalho de espionagem de pessoas real pelo
escritor (Henio Tavares, teoria literária, ed. Itatiaia).
Mas devemos lembrar, quanto a isso,
o processo que Hoffman sofreu do funcionário prussiano Karl von
Kampz, que ele caricaturou com evidente intenção política no
personagem Knarrpanti de Mestre Pulga,
conforme Garcia-Galiano (E.T. A Hoffmann, don juan y outros cuentos
fantásticos, ec. Lectorum). O que induz a questionar profundamente a
crítica realista do romantismo.
Aqui o foco do processo não foi a
liberdade de expressão, mas sim o meio pelo qual as informações
foram obtidas. Hofman que havia sido também funcionário, utilizou
documentação oficial reservada a que tivera acesso.
Tornou-se
o levantamento crítico do nexo de personagem literário e situação
histórica importante numa sociologia da literatura visando a
reconstituição do cenário intelectual de uma época, como ilustra
a discussão a propósito do personagem de Thomas Mann em A
montanha mágica,
a crítica hesitando entre ter sido o personagem Leon Naphta modelado
por Lukacs ou Ernest Bloch.
Atualmente essa questão derivou à
legislação e ao ponto de vista da sociologia clínica como estudo
da anomia, quando a ligação de personagens com pessoas reais não é
feita apenas com base em atitudes éticas ou politicamente corretas,
mas para forjar imagens distorcidas conforme os interesses, o que se
designa “manipulação identitária”. Os meios de informação
sobre a pessoa, sendo abusivos da privacidade dela, não se trata de
cercear a liberdade de expressão processar tais desvios de meios de
obtenção de informação. A manipulação da identidade está sendo
focalizada em estudos de caso sociológicos, nesse recente
desdobramento do problema no contexto dos novos meios de massa.
Voltando ao nosso assunto, a
convergência do relato do romance inventado pelo personagem com o
romance vivido pelo par na trama, em Follet, é oportuna para a
compreensão da noção crucial do “histórico” na estética
romântica, sobretudo em pintura. Trata-se do envolvimento subjetivo
da cena, aquilo em que esta se constitui como um situação estética
não num sentido biográfico reducionista, mas em que a
irredutibilidade dos gêneros com seus códigos constitutivos – os
literários e os cotidianos – circulam o seu intertexto e são
problematizados na circunstância específica da obra. Esse é o tema
que me parece autorizar a leitura da hermenêutica romântica, vindo
de Schleiermacher e presente na estética dos Schlegel, como
irredutível à que precipita a viragem “compreensiva” das
ciências humanas na transição ao século XX.
III
-
Quanto à cena que focaliza a tópica
epistemológica da imaginação, é introduzida pelo comentário do
narrador a propósito dos ambientes de recepção medieval de obras
da Antiguidade clássica.
Jack pertence à geração que
recebe esses textos como uma novidade, sendo reintroduzidos
no mundo ocidental via tradução árabe. Nós o vemos jantar com
Rachid, um próspero comerciante internacional que “was
multilingual and cosmopolitan in his attitudes. At home he spoke
Castilian, the language of Christian Spain, rather than Mozarabic.
His family also all spoke French, the language of the Normans, who
were important traders.”
Rachid patrocina um grupo de
clérigos ingleses em Toledo, integrantes de uma comunidade
internacional de intelectuais que inclui “Jews, Muslims,
and Arab Crhistians”, ocupados
com a tradução de obras matemáticas, do árabe ao latim, os quais
hospedam Jack em seu exílio. Jack se torna temporariamente estudante
de matemáticas, e na cena do jantar com Rachid, cuja mente é
aguçada para assuntos intelectuais, o vemos ser solicitado pelo
anfitrião a falar das suas leituras recentes, o assunto
focalizando-se em Euclides.
O narrador registra que Jack,
não obstante explicar fluentemente em que consiste a geometria,
interiormente sente que não consegue transmitir exatamente “o que”
ele, como já um mestre de obras prático, havia aprendido
com Euclides. “He
felt rather frustrated by the conversation: Euclid had come to him
like the bliding flash of a revelation, but he was failing to
communicate the thrilling importance of the new discoveries”.
Após ter tentado explicar pela
aplicação prática, ele agora tenta mostrar a importância da
matéria focalizando a novidade do método, apresentando-o como
axiomático. Por consequência, tem que explicar o que é axioma, e
ao exemplificar com a asserção de que “a line can be
prolonged indefinitely”, é
surpreendentemente interceptado pelo protesto de Aysha, filha de
Rachid que na inserção da circunstância do exílio, é presumida
como noiva de Jack. Ela nega o axioma, para espanto dos convidados do
jantar, talvez visto ser mulher, a quem normalmente é vedado
participar da conversa dos homens. Ela insiste que a reta deve
completar-se em algum momento, e Jack responde: “But in
your imagination, it could go on indefinitely”.
“In
my imagination, water could flow uphill and dogs speak Latin”, ela
retruca imediatamente antes de ser expulsa da sala pela mãe. O
assunto matemática é assim deslocado pelas piadas dos convivas a
propósito do marido futuro de uma jovem tão impetuosa, o que
naturalmente põe Jack na berlinda.
O que fica impossibilitado de se
fazer ver a Aysha é então a particularidade do axioma concebido
intelectual/ imaginariamente, integrar um método, isto
é, justamente não o exercício da imaginação qualquer, e sim
tendo-se como pensamento aplicado
a uma rede que especifica um campo de conhecimento determinado.
Essa rede é a que hoje chamaríamos
sistema ou estrutura onde o princípio da arbitrariedade do signo não
se vê contrariado mesmo se pudermos por vezes detectar a sua
motivação por algo ulterior ao campo. Podemos batizar uma estrela
antes desconhecida com um nome que nos vem de nosso convívio social,
mas isso não prova que a astronomia é algo metodologicamente
extensível à natureza da nossa civilidade. Inversamente, a mentalidade de Aysha seria típica da epistemologia denotativa a que estamos opondo a epistemologia da
imaginação.
O
"raciocínio de imaginação" afirma-se concomitantemente à
chamada "revolução do cálculo", no século XIV, conforme
de Libera, como o correlato epistemológico do princípio filosófico
anti-escolástico (anti tomista-aristotélico), designado princípio
da potentia Dei absoluta, em
que nenhum constrangimento racional ou factual limita a vontade
absoluta de Deus.
O
raciocínio torna-se um instrumento heurístico que condiciona certo
procedimento imaginário, ora modelizando matematicamente relações
calculáveis entre objetos físicos manipulados independentemente de
qualquer experiência, isto é, meramente postuláveis pelo
pensamento, ora reduzindo problemas físicos à matemática pura, ora
limitando assim o alcance epistemológico do método de abstração e
funcionalização de conceitos ao campo do “não-real”. O
procedimento consiste portanto em remontar do possível físico ao
possível lógico.
A experiência não nos fornece o
ser invariável das coisas, mas o seu estar aí conforme a vontade de
Deus que pode mudá-las ou conservá-las independente de qualquer
fator perscrutável pelo homem. O dever, conforme Duns Scottus, vale
apenas pela notificação expressa, não por qualquer justificativa
natural.
É interessante o modo como de Libera compara esse procedimento com
as notas de Galileu sobre a função heurística do imaginário que
consiste, já no interior do método experimental autêntico da
modernidade, em propor no pensamento certos objetos não dados na
experiência – como uma superfície “verdadeiramente” plana .
Ora,
com Galileu o que assim se articula como apenas pensável só está
se propondo para ser posto em jogo, isto é, para ser de algum modo
aplicado à experiência. Já o procedimento tardo-medieval jamais
vai do modelizado à experiência. As relações conceituais só se
movimentam no espaço abstrato da argumentação lógica. Por esse
motivo, de Libera prefere não estender o raciocínio de imaginação
ao quadro posterior ao entorno medieval.
Quanto
à “revolução do cálculo” , ainda no século XIV, segundo de
Libera abrange a aplicação de linguagens analíticas –
matemáticas ou “quase matemáticas” (Heytesbury, Billingham) e
lógicas, linguagem de proportiones e de suppositiones (Ockham). A
finalidade da interação dessas linguagens no projeto matemático
aplicado a problemas lógicos ( denominação, tradução), ainda que
comportando testes impostos a suas regras, tampouco introduzem
qualquer confronto com a experiência ou se destinam a uma
experimentação ativa. A finalidade não abrange a verificação de
hipóteses, mas apenas gerar puzzles lógicos de modo que se
desenvolvem no puro âmbito da análise lógica, não na efetividade
da indução científica.
Em
Follet, como observamos acima, esse tema surge conexo ao que ocorre
na exterioridade do circuito oficial das escolas, bem antes, já no
século XII, enquanto de Libera o associa, na forma de modelização
puramente matemática de objetos manipulados a priori, ou da redução
de problemas físicos a problemas matemáticos, aos procedimentos dos
calculatores ingleses.
A
meu ver, mesmo sendo importante conservar a particularidade
enfatizada por de Libera, pois trata-se de um ambiente que antecede o
método experimental, o aporte epistemológico da Imaginação se
mantém como uma corrente subterrânea na modernidade, uma vez que
está relacionada ao deslocamento ontológico do princípio racional
conexo à evidência ideal ou factual para um estatuto ulterior ao de
um real que antecede toda discriminação pensável. O que vimos ser
destacado pelo próprio de Libera como a conexão do surgimento do
raciocínio “secundum imaginationem” a um domínio da especulação
interposto “pelo modo de consideração específica da
potentia Dei absoluta”.
É
assim que também poderíamos situar a “complicatio” de Nicolau
de Cusa, nomeando esse real como inexistência de opostos na mente de
Deus, cuja apreensão por nós é intellectualiter,
não rationaliter como
o que corresponde à discriminação de opostos tendo por correlato a
“explicatio”.
Assim,
Nicolau de Cusa opõe sua “matemática intelectual” à
“matemática racional” de Euclides tanto quanto à “matemática
sensível” do agrimensor. O método intellectualiter se
rege pelo princípio da coincidência dos opostos, enquanto o que é
rationaliter, se rege
pelo princípio de não-contradição. Essa matemática do Cusano
equivale a subverter a hierarquia aristotélica que inferiorizava o
exercício da geometria em favor da definição, ofício da filosofia
ou do que se chamava física apenas como um ramo da filosofia.
Em
todo caso, é oportuno lembrar que Galileu infirmou o principal da
física aristotélica, refutando o princípio causal do movimento e
lançando o princípio da inércia, justamente ao imaginar a
trajetória de um corpo sem as condições de atrito.
Além de Galileu, a heurística da
imaginação está presente no contexto moderno da física associada
à terminologia de Einstein. Isso foi especialmente ressaltado por
Carl Sagan, no seu alentado estudo “Cosmos” :
“A relatividade é rica em frases iniciando-se:
Imaginemos... Einstein chamava este tipo de exercício de
Gedankenexperiment, um experimento idealizado através do
pensamento”.
Conforme
Einstein afirmou em Como vejo o mundo, uma
teoria não é feita limitando-se pela experiência possível, como o
resultado de dados. Ela é construída arbitrariamente no pensamento,
lembrando aqui que em se tratando de física, a linguagem da
construção é a matemática pura – podemos exemplificar a
oportunidade dessa colocação, ao tempo de Einstein, pela situação
marginalizada de Riemann num ambiente fortemente marcado pelo
empirismo de Mach.
Como
reportado pelo biógrafo de Einstein: “In
Riemann's geometry, parallel lines do not exist, the angles of a
triangle do not add up to 180°, and perpendicculars to the same line
converge”.
Além disso, “In
Riemann world the shortes lines joining any two points are not
straight lines, but geodesics...”
(R. Clarck,
Einstein, the life and times, Avon books, formato pocket).
Como se sabe, Einstein utilizou a geometria de Riemann para criar
equações passíveis de descrever a estrutura do universo.
No
ambiente intelectual que se cristaliza no século XIV, conforme
Bréhier, o que está em marcha é a progressiva denegação de
princípios de saber que mantinham viável a totalização do real
por via aristotélico-tomista. Mas isso não
implicou, nesse interregno, a recusa da atribuição do Real criado
por Deus.
Inclusive as correntes de ceticismo
e pirronismo como de Montaigne e Rabelais, Nettesheim e Talon são
dirigidas contra o dogmatismo aristotélico, mas em prol da religião.
Tudo parece permitir afirmar que são os motivos de fragmentação
das visões totalizantes do cristianismo tipificado na “escolástica”
que contribuem para o deslocamento da associação helênica do
racional e do real pela interposição de um nível arbitrário, o
impensável prévio à determinações do ser, onde o que se procura
instalar não é apenas o “uno” neoplatônico, correlato por
emanação ao ser, mas o aspecto subjetivo e por isso voluntarioso
correspondendo à imagem do Deus especificamente cristão.
A oposição de intellectualiter
e rationaliter
é o que podemos
afirmar irredutível à oposição que Kant operou entre o
transcendental e o empírico, e o que o pós-romantismo tematizou,
contra Kant, em termos de “intuição intelectual”, a apreensão
da subjetividade na posição do pensamento precisamente enquanto
absoluto.
O
que autoriza essa dedução é que entre o intellectualiter
e o rationalliter,
não há uma oposição assim como da condição geral de
possibilidade da objetividade a toda apreensão particular do
objetivo. A complicatio que
atingimos apenas “intelectualmente”, pode ser apresentada como o
que Schelling conceituou em termos de “equipossibilidade”.
Para ele localizando o absoluto, para Cusano a mente de Deus, nessa
inserção não estão as ideias claras e distintas, mas a
neutralidade de todas as oposições somente a partir das quais e a
razão pode apreender alguma atribuição ideal.
Ora,
dessa neutralidade ou
não-discernível
genético, o que se desdobra não são imediatamente as ideias
discerníveis geradas, mas as oposições, a duplicidade, que
perfazem regiões de atribuição ideal como sistemas de saber ou de
envolvimento prático na efetividade. O Romantismo desconstrói a
contraposição dual como universal do pensamento. Essa afirmação
permite-nos aproximar dois cenários importantes do seu entorno,
aquele em que se trata especificamente da intelibibilidade dos
sistemas, em Schelling; e onde se trata da filosofia de Antonio
Pedro de Figueiredo.
2)
A Imaginação
em Estética e Epistemologia
Na
espistemologia da representação, que abrange a habitualmente
designada “filosofia tradicional” ou metafísica, a imaginação
tem o mesmo estatuto ambíguo que o primitivo em relação ao
civilizado, todo antes em relação a um depois que na verdade só é
posto nessas condições para revelar-se um antes do antes que melhor
se discerne no depois. O antes empírico se relega a derivado em
relação a um depois somente na ordem empírica, mas
fundamentalmente um antes (o fundamento, a anterioridade mesma de
todo antes).
Assim, nessa paralógica da representação, o civilizado é o
lógico-racional, e o primitivo que lhe antecede é o pré-lógico,
mas isso por que essencialmente o homem é racional e a humanidade
desde os primórdios está destinada ao estado de civilização
ocidental.
Na
filosofia tradicional caracterizada como paralógica da
representação, rubricada como “história da filosofia” tout
court, a imaginação é o antes
do pensamento e o depois dos sentidos. Ambos, sentidos e imaginação
estão pretéritos ao pensamento como ao entendimento ou razão. Eles
lhe fornecem sua matéria desde que a percepção deve ser algo mais
que registro caótico dos dados dos sentidos. O objeto do saber não
é o percebido, nem o imaginado, mas o ser de ambos, o que só é
estipulado, alcançado ou enunciável pelo pensamento ou razão.
Certamente
é superficial tratar “a imaginação”, em “história da
filosofia”, como correlato ao verbete de um dicionário da língua.
Um dicionário de filosofia mostraria, inversamente a um "sinônimo",
como os vários filósofos discerniram conceitos possíveis de
imaginação – mas constatamos que mantendo a abrangência
tradicional, trata-se sempre da imaginação oposta ao
pensamento assim como todo suplemento se opõe ao fundamento.
Nessa linha tradicional, imaginação é aptidão a formar imagens
das coisas, uma bola como um objeto redondo, por exemplo. Ela é
suposta comum aos homens, mas não é por si só capaz de fornecer a
verdade do que faz ver. Se alguém designa uma bola como
essencialmente o que se usa no futebol, enquanto mais alguém objeta
que o que se usa nesse esporte é apenas um tipo de bola, esse já é
um exercício fora da imaginação e bem próprio do
pensamento.
Quanto à imaginação assim
posicionada, os filósofos tradicionais devem pensar se vemos a bola
como objeto redondo por que as bolas o são na realidade, ou por uma
particularidade da nossa constituição humana, e explicar de que
forma cada uma dessas possibilidades se efetivaria, o que também é
opinião variável entre eles. Um filósofo pode interpor
a interpretação dos conhecimentos científicos de uma época,
psicologia, fisiologia, etc., para embasar a sua escolha e a
explicação dela, ou pode se opor às formas científicas de
pesquisar esse assunto.
Esse
uso filosófico tradicional da noção de imaginação não está
oposto a um uso cotidiano da palavra que poderíamos exemplificar
pela resposta de Aysha no romance de Follet, ainda que esse uso
cotidiano não precise conhecer o filosófico. O uso do termo
“imaginação” assim exemplificado é apenas a consequência do
situamento da imaginação como faculdade de formar imagens antes do
exercício do pensamento ou entendimento, pois se ficássemos só
nela, poderíamos misturar à imagem de bola qualquer outra imagem
numa conexão ela mesma imaginada. Bolas poderiam ser pássaros por
que voam quando lançadas. Nessa posição antes do pensamento, não
haveria especificação da adequação ou impropriedade
da associação qualquer de imagens.
É
importante notar que essa enformação filosófica tradicional da
imaginação está relacionada até mesmo a um entendimento da arte
poética. Se ela é boa, nos dizem habitualmente, é por que a
liberdade imaginativa das conexões sem especificidade intelectual
está sempre de algum modo regrada por uma conexão autorizada pelo
pensamento e já conhecida. É generalizadamente uma metáfora, ou
particularmente alguma figura de estilo, tropo que mantém uma
relação óbvia com alguma associação legítima do ponto de vista
do pensamento.
Antes
da “arte moderna”, por definição “não-tradicional”, a
ambiguidade não era o que se procurava num poema senão para
desqualificá-lo. Quando em Macbeth,
Shakespeare escreve na cena II do segundo ato: “Sleep
that knips up the ravell's sleave of care”, William
Alston (Filosofia da linguagem, ed. Zahar)
deduz que“o sono que conserta a manga desfiada dos
cuidados” é uma metáfora do
“efeito reparador do sono” que
assim está sendo referenciado tão bem quanto se usássemos esta
expressão em vez daquela. Mas com um excesso de talento poético tal
que compreendemos por meio do verso de Shakespeare de que modo o
efeito do sono é reparador. “Pense em uma mulher
consertando a manga desfiada de uma camisola e você terá um ícone
da ação de dormir de uma pessoa cuja vida está cheia de
preocupações”.
Esse
estudo de Alston é do período contemporâneo, de inícios dos
“sixties”, exemplificando o que podemos afirmar como o fato de
que não obstante a “arte moderna” ter forçado a inserir a
ambiguidade na consideração da linguagem poética como algo
inerente a ela, na verdade isso não implica que está geralmente
aceito que essa linguagem é essencialmente ambígua.
Não
só o Realismo, como uma evitação da ambiguidade, mantém a noção
tradicional de imaginação como algo que só tem sentido por sua
relação ao pensamento, pois a ambiguidade pode ser aceita apenas
como um meio pelo qual a poesia induz ao leitor engajar-se no
exercício de projetar uma conexão legítima possível para um verso
enigmático. Se o poeta for além disso e registrar um verso que não
fornece qualquer ensejo a esse exercício, muito do público o
considera uma coisa inútil e esses intérpretes ou seguem o público
ou deduzem que o verso foi feito propositadamente
para espantar – quando não ocorre que ambos, público e crítica,
concordem em tachar o poeta de louco.
Isso
é assim também em artes plásticas ou música. O romântico Turner
foi especialmente ridicularizado pelos jornalistas ingleses, que
nunca haviam tido muito boa vontade com ele, quando se dedicou a
explorar a qualidade plástica do amarelo, algo sem conexão aparente
com alguma técnica de reprodução de cenas reais. As
experimentações dos compostores modernistas como Villa-Lobos nunca
foram aceitas pelo grande público, até as técnicas modernistas
estarem integradas no Rock (progressivo, experimental, etc.) ao
produzir-se um público cujas atitudes, aspirações e mentalidade
não-tradicionais se harmonizavam com as dos artistas. Já o pop-rock
desenvolve uma linha “neo-romantica” desde os anos setenta,
quando se lançou com artistas como Linda Ronstadt.
O
pós-kantismo, ou pensamento romântico pode ter sua história
iniciando-se como uma tomada de posição a propósito de uma
polêmica sobre a imaginação, sendo a parte escolhida por ele
inteiramente inesperada no contexto em que a polêmica surgiu –
lembrando que o romantismo é a pioneira forma auto-designada de
“arte-moderna” e assim explicitamente voltada contra o cânon
tradicional. Nesse momento crucial tratou-se de tomar partido contra
Kant a favor de um místico, Swedenborg, mas não por alguma
profissão de fé, e sim como numa autêntica opção filosófica.
Essa polêmica surge com um ar não
polêmico, mais uma objeção kantiana movida a algo tradicionalmente
considerado absurdo, tanto mais considerado assim num entorno de
época como o Iluminismo (séc. XVIII). Inesperadamente,
aproximando-se o século XIX, os ânimos se encontram acirrados
contra a objeção. Mas
ela estava realmente ancorada num pressuposto que para Kant, o
objetor, era consenso presente obtido pela remodelação que o
presente havia permitido operar em relação ao que nenhum passado
podia ter deixado de ver de um certo modo, ainda que até aqui o
enunciasse de outros modos. Consenso a propósito daquela divisão
tradicional entre imaginação e pensamento, que sua filosofia havia
conservado, não obstante tematizar a imaginação de um modo
próprio.
Assim, Kant havia liberado a
imaginação na arte, mas definido a arte como o oposto da ciência
na medida em que na arte não podia ser o caso do pensamento
(conceito), e se fosse o caso a obra de arte incorreria no desagrado
do público, pois o gosto suscitado
pela arte ele atribuiu ao seu caráter de pura imaginação. No
entanto, essa imaginação seria pura apenas por que colocando o
entendimento a seu serviço, invertendo a hierarquia da ciência.
Kant não pensava realmente na possibilidade de uma arte como a do
abstracionismo ou do surrealismo. Ele manteve a visão metafórica da
linguagem poética.
Inversamente,
se o pós-kantismo é um ambiente “romântico”, na transição ao
século XIX, é por que repentinamente, desde o marco da passagem de
século, a posição pró-Swedenborg se torna estabilizada como
referencial histórico, enquanto a arte romântica visa a imaginação
de um modo não-kantiano, pois toda divisão que Kant opera entre a
razão intelectiva, prática e criativa é a que o romantismo critica
acerbamente.
A
polêmica a propósito de Swdenborg tem por objeto precisamente o
estatuto filosófico da imaginação. Kant designa “fanáticos”
aqueles que seguindo Swendenborg, não querem distinguir a fantasia
da realidade, para considerar igualmente real o que é visto e está
condizente com o entendimento, e o que é visto ou suposto visto por
esse místico, mas não está, é apenas produto da imaginação
exacerbada do louco, ou não controlada pelo pensamento, do
insensato.
Swendenborg
havia escrito estudos de estética como “Ludus Heliconus” e
“Camoena Borea” , entre outros estudos da natureza, antes de se
tornar visionário, e em seguida a isso seus livros se lançaram como
numerosos relatos dessas experiências místicas, à exemplo do
Diarium spirituale e
do Drömboken (livro dos sonhos),
e tratados visando reformas do cristianismo, como Arcania
Coelestia. Em 1782 parte de sua
obra foi vertida ao francês por Pernety, que dela organizou uma
seita com pelo menos uma centena de adeptos em Avignon, operando a
fusão das ideias de Swedenborg e Bohéme a que outros
swedenborgistas se opuseram para depurar somente as concepções
originais do seu mestre.
“Schwarmerey”
é o termo alemão que Kant usou para ridicularizar Swedenborg, sendo
traduzida normalmente por “fanatismo” ou “entusiasmo”,
extensível a “delírio”. Ao usar esse termo, Kant está negando
que Swedenborg tenha produzido obra no campo da filosofia.
Schwarmerey está assim oposto a Aufklarung ( filosofia do
Iluminismo). A estratégia de Kant se torna compreensível se
lembrarmos que “Iluminismo” significa a filosofia materialista e
racional do século XVIII, radicalmente avessa à religiões, que
esses filósofos não distinguiam de superstições místicas, mas os
movimentos místicos dessa época haviam se intitulado seitas de
“iluminados”. Kant está operando uma oposição entre o
iluminado místico e o filósofo iluminista, e para isso reservou
schwarmerey
como
termo para o iluminado, que o colocava fora do jogo do pensamento.
Ele estava negando que por via não filosófica ou racional, se tenha
conhecimento efetivo das coisas, em vez de simples “delírio” de
coisas que não existem.
No
entanto, o termo “schwarmerey” ganhou ressonância inesperada
pelo kantismo, uma vez que podendo estar designando um campo
específico como “misticismo”, resulta não imediatamente palavra
pejorativa devido ao fato de que as seitas místicas se tornaram
sempre mais populares em vez de, como supunham os filósofos, perder
importância ao longo do “século da razão” (sec. XVIII). Seria
um rótulo para algo tornado autônomo, quando até então era
indistinto ou apenas uma opção pessoal.
Mas
de fato, a acusação de Enthusiast
é tradicional no cristianismo contra os suspeitos de heresias ou
feitiçarias, conexa a Phantast
– Jacob Bohéme, em inicios do século XVII, já havia sido acusado
desse modo por seus contemporâneos, conforme Alexandrian (História
da filosofia oculta, edições 70).
O rótulo schwarmerey
revelou-se aplicável a um domínio novo na cultura, liberado tanto
da filosofia quanto da religião.
É
curioso que Kant tenha reservado um lugar para a religião no
contexto prático, como um recurso ético, mas não para o misticismo
que ele então, destacando-se dos iluministas típicos, vê também
como algo autônomo, se bem que num estatuto pejorativo.
Como
escritor que hoje rotularíamos “esotérico” ou “místico”,
Swedenborg inova por ampliar muito os motivos fantásticos na sua
experiência mística, e seus adeptos devem, como ele, considerá-las
reais. Borges, o célebre escritor modernista, é ainda tributário
desse imaginário swedenborgiano, saudando o místico que conversa
com anjos na rua, faz viagens interplanetárias e descreve os
habitantes desses lugares, ou é visitado por eles e até habitado
por vezes, por alguns desses seres, no seu próprio corpo.
Ele
não é apenas um iluminado como Bohéme, é um visionário que no
entanto, não obtém revelações de “sabedoria” em suas visões.
Elas são experiências do absurdo, do impossível para o senso comum
e a razão, o que elas revelam só tem por conteúdo aquilo que elas
mostram, aquilo de que se constituem como imagens – como são os
habitantes dos outros planetas pode não implicar mais do que o
espanto perante a sua estranheza que nada tem a ver com a vida
cotidiana ou com o que quer que fosse de interesse dos homens.
O
conhecimento esotérico pode abranger o saber de certas coincidências
que funcionam na prática, como quando certo número se revela
portador de sorte para alguém por que sempre esse número está
associado a circunstâncias felizes, mas enquanto coincidências
continuam inexplicáveis à exemplo das superstições populares:
associa-se certa mistura de plantas a um efeito desejado, mas não se
sabe por que essa mistura atua esse efeito.
Até
aqui, o místico se revestia de uma capa de sábio apenas por
conhecer tais conexões, confundia-se com o cientista ou o
filósofo, mas com Swendenborg, elas apenas são outros tantos
indícios do absurdo da realidade,
o que por outro lado não impede que se tenha fé em Deus e que se
tente compreender as Escrituras Sagradas (a “Bíblia”), ainda que
obviamente não como a religião oficial as entende, já que no dogma
o absurdo está fora de cogitação, há apenas o milagre que não
suscita nenhuma experiência pessoal
de teor fantástico. O Romantismo explora particularmente a ironia
dessa concepção dogmática, pois é claro que o milagre é tão
“fantástico” quanto uma visão absurda do místico.
O
essencial é que Kant usa Swedenborg para ilustrar a sua própria
oposição de imaginação e entendimento. O transcendental kantiano,
a revolução coperniciana da filosofia que instalou na Razão a
condição necessária de toda objetividade já discernível no modo
mesmo como os objetos são por nós intuídos, não pode ser
confundido com uma imaginação criadora.
A
imaginação, tanto quanto a percepção, já estão regradas pela
razão no kantismo, mas elas não são entendimento, não são
pensamento nesse sentido de discernimento inteligível daquilo que é
dado em termos de objeto. Nós não vemos bolas como pássaros, nem
vemos algo que não possamos discernir do seu movimento no ar ao ser
lançado, mas para que a conexão entre bola e pássaro seja
definível como imprópria ou metafórica, enquanto a restrição de
bola como objeto redondo é conexão própria e legítima, nós temos
que exercer algo mais que são as relações determinadas pelo
entendimento (categorias).
Essas
relações, para Kant, não são criação de alguém em
particular, nem do homem como um ser autônomo, mas da Razão
(transcendental) enquanto condição de possibilidade de uma
experiência qualquer de sentido. Presume-se que para além da razão,
a coisa em si seja como a razão apresenta, mas essa questão nunca
poderá ser resolvida conforme Kant, por outro lado sendo inútil, já
que objetividade implica que jamais a coisa em si se comportará
diversamente do modo como a razão pré-ordena a experiência.
Ora,
a irredutibilidade cultural coloca a esse transcendental kantiano um
problema que não se limita ao da coisa em si. Isso ainda é uma
polêmica atual. Muito do estudo da lógica está sendo interceptado
pela filosofia da linguagem, por que o que antes era uma concepção
considerada evidente a propósito da definição, na modernidade
coloca problemas que chegam a ser considerados insolúveis. Os
manuais de lógica tradicionais, como de Liard e Maritain não tratam
da definição como algo que deve ser esclarecido por si, enquanto os
mais recentes, como o de I. Copy (Introdução à lógica,
ed, mestre jou), tem um capítulo
reservado à teoria da definição.
No
terreno comum entre lógica e filosofia da linguagem, as dificuldades
à teoria da definição se tornam inextrincáveis, e ou se apela a
uma solução dogmática, ou como F. Waismann, postula-se uma
“textura aberta” da linguagem, na qual as definições dos termos
são apenas relativas a contextos, não afirmáveis como uma
propriedade da linguagem em si que em vez de ser suposta como
composta por significados fundamentais, é pensada como geração de
contextos em que os termos vem a ser efetuados como portadores de
sentido.
O
caráter da sociedade moderno-ocidental, com sua legislação “in
progress” depende dessa relativização em algum nível, enquanto
que por outro lado a ciência como referencial da razão que
constitui a sociedade enquanto moderna, tende a induzir
renormalizações de algum modo, mesmo quando na própria ciência as
teorias já são pensadas como geração de contextos desde Goedel.
Há
algum tempo, a legislação de uma cidade nos Eua impôs que “iates”
não são “veículos motorizados”, para que pudesse ser cobrada a
tributação de 3% para iates, quando veículos motorizados são
tributados somente em 1%., conforme o exemplo de Copy de um caráter
utilitário
da definição. Mas ocorre, como W. Alston (Filosofia
da linguagem, ed. Zahar),
aceitar-se a possibilidade de indeterminação de Waismann e como
vimos acima, continuar-se a pressupor que há sentidos próprio e
impróprio com relações aos termos, o que não obstante ser uma
posição teórica obviamente ambígua, é algo muito frequente na
atualidade e característica dos adeptos da teoria dos atos de fala,
de Austin.
Assim,
é quando se trata da irredutibilidade cultural que ficam mais
comprometidas as tentativas de manter o dogma da universalidade da
razão ocidental. Esse problema é agudamente tematizado por Derrida
( Limited Inc.,
papirus editora), em
que polemiza com J. Searle, adepto de Austin. A posição de Searle
é, aliás, exemplarmente performatizada por Alston, que não o cita,
apenas repete algo decorrente da teoria de Austin.
Derrida
se mostra exímio na desconstrução da noção de “propriedade”,
“anterioridade”, “primeiridade” do sentido de um termo,
defendida por eles, e para estabelecimento de que desde Austin se
predica o estatuto metafórico da arte como “parasita” em relação
ao sentido denotativo do cotidiano ou da ciência.
Derrida mostra o limite teórico
dessa concepção como sendo o que podemos designar uma petição
de princípio – falácia que
consiste em supor como solução aquilo que é apenas o enunciado do
problema.
Pois, na verdade, quando se pensa que o ato de dispor significados
próprios é o que primeiro temos que compreender quando se trata de
linguagem, para depois colocar a questão de como é que se fazem
derivações metafóricas, já se está subentendendo haver um
critério pelo qual o que é próprio e o que não é são
distinguíveis na linguagem. Mas esse critério é o que está sendo
dito ser liberado pela teoria desde que ela seja a da
linguagem compreendida como geração de significados próprios, o
que está precisamente em questão se é ou não. Obviamente há
petição de princípio, e torna-se jocoso o modo como Searle, na sua
crítica a Derrida, só faz repetir essa mesma falácia, cada vez com
maior veemência, sem perceber do que se trata.
Em
vez de um critério de primeiridade ou propriedade, ou seja, em vez
de pressupor o significado mas deixar intematizado esse caráter do
pressuposto, Derrida institui o conceito de “raiz
dupla”
da linguagem, pelo que seu funcionamento tem por efeito a duplicidade
do referenciado e da referência, de algo metaforizado e da metáfora.
Não se pode extirpar qualquer dos dois sem com isso denegar também
o outro, de modo que o fundamento não o é fora do mecanismo
significante em que ele institui algo como suplemento. E institui
também o conceito de “
lei da iterabilidade”
, que não é contudo transcendental e sim o modo de sua construção,
por onde a linguagem é repetição de estruturas, como do
significante, em contextos heterogêneos.
O
significante não é algo unívoco oposto ao significado, é algo
dado como “brisura” (“briser", refratar entre a grafia e a ordem de leitura) algo que não é presença de objeto, mas movência,
trajeto, remissão, re-ferência, etc. O significante é sua aptidão ao deslocamento ou repetição num outro cenário, sob a aparência
da fixidez ou repetição como o mesmo signo, assim
como a letra que parece um objeto fixo, mas na realidade só existe
para ser deslocada ao infinito na construção das palavras. Derrida
não deixa de explorar a conexão entre as concepções de
primeiridade na línguagem e as operações de dominação política,
pois, de fato, não seria possível o preconceito, as hierarquias
axiológicas, ou a subalternação de outrem, sem essa concepção de
algo primeiro ou mais próprio. O trecho da demonstração desses
conceitos se encontra no Limited inc.,
como resposta à “primeira objeção” de
Searle ( pag, 123 e seguintes, na edição da Papirus).
Aqui
poderíamos ilustrar a importância da liberação e crítica do signo na sua conexão às
ciências da cultura, que como sabemos, surge com o Romantismo onde a
duplicidade do sentido, pelo fato dele ser cultural e historicizado, é a novidade teórica.
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