domingo, 15 de abril de 2012

Romantismo e Imaginação

    
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    Romantismo e Imaginação 
                                  
                      eliane colchete


                A epistemologia característica de entornos que abrangem da época classicista (pelo parâmetro francês, séc . XVII e XVIII) ao cientificismo positivista (meios do séc. XIX) e ainda corrente em algumas tendências contemporâneas, corresponde a uma imagem do homem como faculdade de representação do real. Ela opõe, por um lado a imaginação como simples fantasia; por outro lado o entendimento como inteligência da objetividade.
           Pode ser modulada pelo empirismo ou pelo racionalismo, mas também pela inteligibilidade da doutrina kantiana das faculdades. É bem característica do estrutural-funcionalismo da metade inicial do século XX, nesse caso, o símbolo na cultura, como na religião ou na arte, também se torna dotado de um valor de representação, ainda que ele não seja um signo denotativo. Assim, mesmo que a cultura seja o veículo do símbolo, a objetividade se mantem como uma noção oposta. 
              O “raciocínio de imaginação” do período tardo medieval e renascentista (séc. XII ao XV), o Romantismo pós-kantiano (inícios do século XIX) e o pós-modernismo teórico, correspondem, inversamente à precedente, a uma epistemologia não representativa. Nesta o pensamento, a imaginação ou o inconsciente, atuam como produção de linguagens autônomas e em que são constituídas quaisquer afirmações de fato pela consciência. Nessa epistemologia que designaremos “intellectualiter” por oposição ao “transcendental”, nós não falamos em termos de “decifrar um símbolo”, como falava Cassirer para conceituar o trabalho do historiador ou do estudioso de culturas. Nós só podemos decifrar uma linguagem, um sistema simbólico no qual o símbolo específico tem lugar.
            Não há uma razão a priori objetiva além dos sistemas simbólicos, o que se torna a tarefa conceituar mais geralmente é o inconsciente como a instância de produção e reprodução de sistemas. Estes não são “ideais”, opostas à materialidade, como tampouco o inconsciente é oposto ao cérebro/corporeidade na sua interação prática, social, histórica. Não há oposição matéria/espírito.
           A experiência de cada um, o artista, o cientista, o sujeito da cultura, problematiza os sistemas simbólicos por que a cada vez que atualiza uma dessas linguagens, está situando-a numa imbricação singular, circunstancial, misturando-a a outros sistemas simbólicos, etc. Não podemos reduzir nem à obra individual, nem ao “período” em que certos sistemas são vigentes, o que de fato ocorre na complexidade do devir, mas temos que estudar esses níveis de forma autônoma. Por esse e outros motivos, não considero por ora a crítica que se tornou habitual à conservação da terminologia dos “estilos de época”, mas desde já sublinho que não os tenho tratado como chavões, e sim como problemáticas historicamente delimitáveis.
           O “raciocínio de imaginação” é algo recalcado em história das ciências e em epistemologia, tendo sido porém bastante salientado por Alain de Libera ( A filosofia medieval, ed. Zahar), e estando associável à exposição de Bréhier (Histoire de la philosophie, antiquité e moyen age, ed. Quadrige/Puf). Consistia na livre projeção de hipóteses lógico matemáticas, que não necessitavam provar-se compatíveis com a realidade, mas sim ser internamente coerentes. 
         Com essa denominação de raciocínio “secundum imaginationem”, se manifesta no cenário específico na transição do gótico ao Renascimento, mas permanece referenciável em alguns contextos das ciências na modernidade sem conexão explicitada ao momento feudal, e aqui estou procedendo a sua conexão epistemológica com o pós-modernismo e o Romantismo. Vamos observar essa temática epistêmica com maior minúcia, mais à frente. Por ora, sendo importante notar que na concomitância ao “raciocínio de imaginação”, há uma estética do imaginário própria a esse período de transição entre o medievo tardio e a renascença.
          Quando ocorre ruptura em relação ao realismo classicista exemplificado por Dancour e Lesage, o que surge na transição ao romantismo é uma liberação do imaginário que retoma expressamente essa estética, sendo até explicitamente designada “romance gótico”, iniciando-se com Walpole. Em seguida, ela desdobra-se no Fantástico, estilo que integra o Romantismo, portanto, já na imanência da sua valorização da Idade Média.

       II -

              "The pillars of earth", de Ken Follet, está editado em inglês pela New American Libray, uma seção da Penguin Books, num formato pocket. Está traduzido em português. Nessa edição da Penguin, assinala-se copyright de 1989, mesmo ano do copyrigt da publicação de Libera, o que mostra uma tendência bem afirmável na atualidade, à revalorização dos estudos medievais. O texto de Follet está rotulado na capa como “a novel”, o que podemos traduzir geralmente por “ficção” ou especificamente “romance”.
               O romance de Follet tematiza a irrupção da estética gótica em literatura, que aqui estamos colocando num paralelo à epistemologia por que se trata em ambos os casos, da valorização da Imaginação. Estrategicamente, num outro trecho, é mesmo do que introduz o “raciocínio de imaginação” aquilo de que se trata numa cena que a nossos propósitos se torna bastante esclarecedora.
                 A irrupção do estilo gótico em estética incia-se no século XII, mas afirma-se ainda paralela à revolução do cálculo e ao nominalismo no século XIV. O gótico precede o Renascimento e assinala o limite, como o apogeu, do período medieval, mas ao norte dos Alpes perdura até o quinhentos e contamina os motivos de todo esse período, como na miniatura de Jean Fouquet, no século XV, a propósito da construção do templo de Jerusalém que é na verdade a de uma igreja gótica.
               Em artes o limite do período medieval costuma ser demarcado por  Pisano, no século XIV, cuja obra gótica é interceptada pela influência de Giotto que já introduz princípios renascentistas. Conforme Upjohn, Wingert e Mahler (História da arte, livraria Bertrand), os medalhões da porta Sul do batistério de Florença são exemplo do gótico de Pisano. Não obstante já mostrarem influência de Giotto, conservam-se similares aos da Catedral de Amiens (1220/80), assim como a Chartres e Notre Dame de Paris foram acrescentados motivos nesse estilo. Em geral o gótico é a irrupção de formas possibilitadas por maior conhecimento em arquitetura e desenvolvimento das artes, de modo que as catedrais se tornam muito altas, as cidades competindo pela maior altura de suas construções novas. Os cidadãos cooperavam ativamente na construção das igrejas, que permitiam intensa claridade em seu interior, com incremento dos vitrais. 
           A estória de Follet é encenada no século XII (entre 1123 e 1145). Apresenta Jack, o jovem protagonista, cuja carreira como arquiteto, que havia começado como aprendiz do seu padrasto, demarca a inovação do gótico em cuja revolução ele participa, assinalando a sua inovação em relação à arte do seu mestre. Jack não apenas inova estilisticamente. Ele é um arquiteto no sentido mais próximo ao atual do termo, enquanto Tom, o padastro, era um homem de afazeres, como na oposição do agrimensor ao iniciado em ciências matemáticas.
          O jovem completa uma trajetória que havia sido apenas sonhada pelo padastro, um homem pobre que só pôde lidar com residências familiares e igrejas interioranas: chegar a dedicar-se à construção de catedrais – que se tornam o referencial na arte gótica, de modo que mesmo as igrejas pequenas e distantes podem agora se projetar como poesias da mente de um construtor talentoso.
Inicialmente, vamos focalizar o trecho em que se trata de estética.
             Trata-se da cena em que Jack torna explícita a côrte a Aliena – sua noiva na estória, e com quem depois ele se casa – ainda que esse seu gesto a princípio permaneça enigmático para ela.
             O nome “Aliena” parece signo ironicamente motivado. É referencial nesse entorno medieval conforme registra de Libera  a perífrase terra aliena (terra do exílio) que designa Paris em relação à cristandade, como cidade que está concentrando o novo meio institucional da cultura , as “escolas catedrais” (capitulares ou episcopais) que desde o século XII substituem as escolas monásticas onde se era obrigado pela regra de obediência, e de que nascem as universidades - isto é, como lugar para onde estão vindo os estudiosos cristãos de todas as partes da Europa. Mas de fato, se o romance tem um componente de infixação, com deslocamentos e exílios, ele é referencial ao ambiente anglo-saxão.
             Jack é filho de um injustiçado jongleur, e ele mesmo exibe esse talento poético aplicado, porém, à arte da composição de estórias conforme o estilo até aí tradicional, em forma de poema. Após o incidente da côrte a Aliena, Jack converte-se arte da composição de romances.
            Ao longo de seus encontros como amigo de Aliena, ele conta à jovem aquele tipo de estórias. Nessa cena, Aliena resolve ler “O Romance de Alexandre”, em retribuição às narrativas dele, o que o motiva subsequentemente à criação nesse novo gênero.
             Carpeaux (História da literatura ocidental, ec. Alhambra, vol. 1) condensou a história da penetração da tradução latina do que tratou pelo epíteto de “romance fantástico de Alexandre Magno”, romance bizantino do Pseudo-Kallisthenes. Na Idade Média é conhecida a tradução de Julius Valerius, com versões em latim (Leon de Nápoles; Gualterius de Châtilon). A versão de Lambert le Tort e Alexandre de Bernay, designada Roman d'Alexandre cristalizou a forma popularizada desde o século XII. Carpeaux registrou também várias versões nacionais no território europeu, e salientou particularmente a importância da tradução tcheca da versão de Châtillon no processo literário desse país.
            Entre as estórias de Jack e o romance lido por Aliena, as temáticas citadas pelo narrador resumem os ciclos da literatura medieval, acrescida da inserção de quadros históricos mais ou menos recentes: Jack absorve-se no ciclo carolíngeo, nas aventuras de Guilherme de Orange e os Sarracenos, enquanto o romance de Aliena seria atribuível ao ciclo de Alexandre Magno. Mas a forma é que está perfeitamente contrastada.
            As estórias de Jack, como assinalei são apresentadas como poemas, por vezes tão longos que precisam de mais que uma tarde para serem contados. São realistas e feitos para despertar emoções logicamente condizentes com os acontecimentos, isto é, são cenas convencionais para um público que deve recebe-las ingenuamente, sem questionar as regras prescritas dos papéis sociais, aceitando-as como natureza, sem jamais perscrutar os reais sentimentos ou traços de personalidade além das aparências desse comportamento protocolar.
           Inversamente, conforme o narrador, “Aliena's romance featured love affairs and magic”. O narrador não se demora a explicar as particularidades do conteúdo, mas as da forma ele desenvolve num paralelismo bastante interessante, por meio da descrição do romance que Jack compõe evidentemente baseando-se no modelo daquele que ouviu de Aliena – sem esquecer que a inserção do gênero romance está concomitante ao início do “romance” afetivo dos jovens, tudo ocorrendo dentro do romance The pillars of Earth, que estamos lendo, de Follet.
            No encontro seguinte Jack inicia a narrativa do seu romance e Aliena torna-se sua ouvinte. A meu ver torna-se claro que a estória de Jack contém muito da própria biografia, como um simbolismo do seu papel de continuador do que se inicia antes dele.
            Esse papel é que se torna importante considerar, pois habitualmente o período tardo-medieval é considerado uma ruptura sem precedentes com o anterior, devido à penetração dos títulos clássicos antigos e à situação mais estabilizada do poder eclesiástico, não obstante começar agora o novo sentido do conflito intra-europeu, desencadeando-se o processo das formações nacionais. Atualmente, os estudos medievais enfatizam as lacunas dos nossos conhecimentos e tentam evitar o estereótipo da “feudalidade” – na verdade, a posição do rei é bastante enfatizada nesse romance de Follet.
           Ellie Faurie destaca, inversamente, a coincidência do gótico com a autonomia das comunas e sua nova importância no quadro social da Idade Média, enquanto no plano da política oficial trata-se da impotência das aspirações nacionalistas – quadro histórico simetricamente inverso ao que ocorrerá do quinhentos em diante. Ao que me parece, esse problema se torna menos complicado se adotarmos o princípio da autonomia das regiões europeias, em vez de perseguir um rótulo histórico para feudalismo em geral. Além disso, como Bakhtin acentuou no seu estudo de Rabelais, a Idade Média não é um contexto cultural homogêneo, sendo percorrido por dois ambientes culturais bem distintos, o popular e o eclesiástico-erudito.
              O protagonista de Follet comunica uma impressão de continuidade e ampliação das expectativas precedentes, justamente nesse nível das pessoas comuns que atuam transitivamente, como trabalhadores e população integrante, entre cidadezinhas e côrtes, intrigas palacianas e instituição eclesiástica. O período resulta apresentado como um processo ascendente, em vias de consolidar-se, que une as gerações.
              Aqui não seria nosso assunto a história social da idade média, mas sim notar que é esse elemento transitivo que me parece interessar sobremodo o medievalismo e o folclore à época do romantismo, posto que nele concentra-se o processo de fusão cultural de clássico, bárbaro e cristão, mas de tal modo que não é a crônica do seu confronto o que importa ao historiador social romântico, e sim precisamente o elemento de ligação que Jack representa como o sujeito da cultura e da língua provenientes dessa mistura. Por outro lado, a esse estudioso na época romântica, enquanto pioneiro em “ciências do espírito”,  interessa reconstituir a originalidade de cada procedência cultural autônoma, do que resultou a cisão de cristianismo e classicismo que antes, como na era cartesiana, estavam homogeneizados pela filosofia.
              O romance de Jack conta como um jovem escudeiro herda do seu cavalheiro a tarefa de viajar ao leste longínquo e reaver uma videira em que crescem rubis. O fato de ser o jovem quem tem que se haver com a tarefa, de fato é uma inovação no esquema do gênero, como salientado pelo narrador, pois esse herói é sem dinheiro, inexperiente, praticamente nada tendo que o pudesse distinguir. Nessas condições, seu grande amor pela filha do rei se conserva inconfessável. As anomalias continuam posto que o jovem perde batalha após batalha em vez de consagrar-se por tremendos danos causados aos inimigos por meio da espada mágica do cavalheiro, como seria comum nesses relatos. Em vez disso, o herói quase sempre escapa por um triz, sendo objeto de mofa por parte dos cortesões.
              Ele consegue retornar com a videira mágica, mas, como poderíamos associar a Kirkegaard, não obtém a mão da princesa – nesse ínterim, Jack performatiza com Aliena a côrte do escudeiro à princesa, e é por isso que ela não consegue decidir a princípio se ele a beijou realmente ou apenas desempenhou o papel do escudeiro de sua estória, situação típíca da subjetividade romântica. A narrativa fica indeterminada, pois o escudeiro jura que irá casar com a princesa que lhe foi negada pelo rei, mas Jack não produz esse desfecho: “I haven't thought of it yet”, ele responde a uma Aliena genuinamente interessada no relato cujos desvios parecem ter produzido um efeito mais notável que o convencional, ainda redobrados pela sugestão, inevitável mas subliminar, da convergência dos destinos dos personagens da estória e dos personagens do romance que estamos lendo, ela mesma e Jack.
             As características do romance mágico medieval são estritamente convergentes com a estética romanesca do romantismo e com o que para alguns como Noel, é a antítese do romance, ainda que gênero romântico, o fantástico. Pois, no romance algo é comunicado na forma da estória, enquanto no fantástico a narrativa é absurda ou não tem desfecho pois não se conhece o destino do herói, como no conto de Hoffman, “La iglesia de los jesuítas de G...”.
             Em todo caso, aqui é a imaginação a transversal, como o que concede a autonomia do gênero, pois não há qualquer justificativa plausível ou sequer necessária para o fato da videira produzir rubis – por isso o “fantástico” foi também designado “mágico”. Esse tipo de motivo, com seu apelo popularesco, é pervasivo em Hoffman, por exemplo no “Zacharias”, onde vemos uma fada inverter a percepção normal das pessoas na atribuição de um ato ao seu sujeito.
              É também o que impede que a literatura romântica, mesmo sendo por vezes tão modelada por pessoas reais quanto Eça de Queiroz pretendeu que o realismo devia ser, descambe para o didaticismo do “tipo”. Generalização que Eça no entanto supunha tão desejável que, por outro lado, isso autorizava a crítica do romantismo como uma mitificação da pessoa através do halo do personagem construído como lendário, e propunha o realismo como um trabalho de espionagem de pessoas real pelo escritor (Henio Tavares, teoria literária, ed. Itatiaia).
             Mas devemos lembrar, quanto a isso, o processo que Hoffman sofreu do funcionário prussiano Karl von Kampz, que ele caricaturou com evidente intenção política no personagem Knarrpanti de Mestre Pulga, conforme Garcia-Galiano (E.T. A Hoffmann, don juan y outros cuentos fantásticos, ec. Lectorum). O que induz a questionar profundamente a crítica realista do romantismo.
             Aqui o foco do processo não foi a liberdade de expressão, mas sim o meio pelo qual as informações foram obtidas. Hofman que havia sido também funcionário, utilizou documentação oficial reservada a que tivera acesso.
           Tornou-se o levantamento crítico do nexo de personagem literário e situação histórica importante numa sociologia da literatura visando a reconstituição do cenário intelectual de uma época, como ilustra a discussão a propósito do personagem de Thomas Mann em A montanha mágica, a crítica hesitando entre ter sido o personagem Leon Naphta modelado por Lukacs ou Ernest Bloch.
            Atualmente essa questão derivou à legislação e ao ponto de vista da sociologia clínica como estudo da anomia, quando a ligação de personagens com pessoas reais não é feita apenas com base em atitudes éticas ou politicamente corretas, mas para forjar imagens distorcidas conforme os interesses, o que se designa “manipulação identitária”. Os meios de informação sobre a pessoa, sendo abusivos da privacidade dela, não se trata de cercear a liberdade de expressão processar tais desvios de meios de obtenção de informação. A manipulação da identidade está sendo focalizada em estudos de caso sociológicos, nesse recente desdobramento do problema no contexto dos novos meios de massa.
             Voltando ao nosso assunto, a convergência do relato do romance inventado pelo personagem com o romance vivido pelo par na trama, em Follet, é oportuna para a compreensão da noção crucial do “histórico” na estética romântica, sobretudo em pintura. Trata-se do envolvimento subjetivo da cena, aquilo em que esta se constitui como um situação estética não num sentido biográfico reducionista, mas em que a irredutibilidade dos gêneros com seus códigos constitutivos – os literários e os cotidianos – circulam o seu intertexto e são problematizados na circunstância específica da obra. Esse é o tema que me parece autorizar a leitura da hermenêutica romântica, vindo de Schleiermacher e presente na estética dos Schlegel, como irredutível à que precipita a viragem “compreensiva” das ciências humanas na transição ao século XX.

           III -

              Quanto à cena que focaliza a tópica epistemológica da imaginação, é introduzida pelo comentário do narrador a propósito dos ambientes de recepção medieval de obras da Antiguidade clássica.
                Jack pertence à geração que recebe esses textos como uma novidade, sendo reintroduzidos no mundo ocidental via tradução árabe. Nós o vemos jantar com Rachid, um próspero comerciante internacional que “was multilingual and cosmopolitan in his attitudes. At home he spoke Castilian, the language of Christian Spain, rather than Mozarabic. His family also all spoke French, the language of the Normans, who were important traders.”
             Rachid patrocina um grupo de clérigos ingleses em Toledo, integrantes de uma comunidade internacional de intelectuais que inclui “Jews, Muslims, and Arab Crhistians”, ocupados com a tradução de obras matemáticas, do árabe ao latim, os quais hospedam Jack em seu exílio. Jack se torna temporariamente estudante de matemáticas, e na cena do jantar com Rachid, cuja mente é aguçada para assuntos intelectuais, o vemos ser solicitado pelo anfitrião a falar das suas leituras recentes, o assunto focalizando-se em Euclides.
             O narrador registra que Jack, não obstante explicar fluentemente em que consiste a geometria, interiormente sente que não consegue transmitir exatamente “o que” ele, como já um mestre de obras prático, havia aprendido com Euclides. “He felt rather frustrated by the conversation: Euclid had come to him like the bliding flash of a revelation, but he was failing to communicate the thrilling importance of the new discoveries”.
            Após ter tentado explicar pela aplicação prática, ele agora tenta mostrar a importância da matéria focalizando a novidade do método, apresentando-o como axiomático. Por consequência, tem que explicar o que é axioma, e ao exemplificar com a asserção de que “a line can be prolonged indefinitely”, é surpreendentemente interceptado pelo protesto de Aysha, filha de Rachid que na inserção da circunstância do exílio, é presumida como noiva de Jack. Ela nega o axioma, para espanto dos convidados do jantar, talvez visto ser mulher, a quem normalmente é vedado participar da conversa dos homens. Ela insiste que a reta deve completar-se em algum momento, e Jack responde: “But in your imagination, it could go on indefinitely”.
           “In my imagination, water could flow uphill and dogs speak Latin”, ela retruca imediatamente antes de ser expulsa da sala pela mãe. O assunto matemática é assim deslocado pelas piadas dos convivas a propósito do marido futuro de uma jovem tão impetuosa, o que naturalmente põe Jack na berlinda.
             O que fica impossibilitado de se fazer ver a Aysha é então a particularidade do axioma concebido intelectual/ imaginariamente, integrar um método, isto é, justamente não o exercício da imaginação qualquer, e sim tendo-se como pensamento aplicado a uma rede que especifica um campo de conhecimento determinado.
            Essa rede é a que hoje chamaríamos sistema ou estrutura onde o princípio da arbitrariedade do signo não se vê contrariado mesmo se pudermos por vezes detectar a sua motivação por algo ulterior ao campo. Podemos batizar uma estrela antes desconhecida com um nome que nos vem de nosso convívio social, mas isso não prova que a astronomia é algo metodologicamente extensível à natureza da nossa civilidade. Inversamente, a mentalidade de Aysha seria típica da epistemologia denotativa a que estamos opondo a epistemologia da imaginação.
          O "raciocínio de imaginação" afirma-se concomitantemente à chamada "revolução do cálculo", no século XIV, conforme de Libera, como o correlato epistemológico do princípio filosófico anti-escolástico (anti tomista-aristotélico), designado princípio da potentia Dei absoluta, em que nenhum constrangimento racional ou factual limita a vontade absoluta de Deus.
         O raciocínio torna-se um instrumento heurístico que condiciona certo procedimento imaginário, ora modelizando matematicamente relações calculáveis entre objetos físicos manipulados independentemente de qualquer experiência, isto é, meramente postuláveis pelo pensamento, ora reduzindo problemas físicos à matemática pura, ora limitando assim o alcance epistemológico do método de abstração e funcionalização de conceitos ao campo do “não-real”. O procedimento consiste portanto em remontar do possível físico ao possível lógico.
             A experiência não nos fornece o ser invariável das coisas, mas o seu estar aí conforme a vontade de Deus que pode mudá-las ou conservá-las independente de qualquer fator perscrutável pelo homem. O dever, conforme Duns Scottus, vale apenas pela notificação expressa, não por qualquer justificativa natural.
É interessante o modo como de Libera compara esse procedimento com as notas de Galileu sobre a função heurística do imaginário que consiste, já no interior do método experimental autêntico da modernidade, em propor no pensamento certos objetos não dados na experiência – como uma superfície “verdadeiramente” plana .
           Ora, com Galileu o que assim se articula como apenas pensável só está se propondo para ser posto em jogo, isto é, para ser de algum modo aplicado à experiência. Já o procedimento tardo-medieval jamais vai do modelizado à experiência. As relações conceituais só se movimentam no espaço abstrato da argumentação lógica. Por esse motivo, de Libera prefere não estender o raciocínio de imaginação ao quadro posterior ao entorno medieval.
        Quanto à “revolução do cálculo” , ainda no século XIV, segundo de Libera abrange a aplicação de linguagens analíticas – matemáticas ou “quase matemáticas” (Heytesbury, Billingham) e lógicas, linguagem de proportiones e de suppositiones (Ockham). A finalidade da interação dessas linguagens no projeto matemático aplicado a problemas lógicos ( denominação, tradução), ainda que comportando testes impostos a suas regras, tampouco introduzem qualquer confronto com a experiência ou se destinam a uma experimentação ativa. A finalidade não abrange a verificação de hipóteses, mas apenas gerar puzzles lógicos de modo que se desenvolvem no puro âmbito da análise lógica, não na efetividade da indução científica.
           Em Follet, como observamos acima, esse tema surge conexo ao que ocorre na exterioridade do circuito oficial das escolas, bem antes, já no século XII, enquanto de Libera o associa, na forma de modelização puramente matemática de objetos manipulados a priori, ou da redução de problemas físicos a problemas matemáticos, aos procedimentos dos calculatores ingleses.
            A meu ver, mesmo sendo importante conservar a particularidade enfatizada por de Libera, pois trata-se de um ambiente que antecede o método experimental, o aporte epistemológico da Imaginação se mantém como uma corrente subterrânea na modernidade, uma vez que está relacionada ao deslocamento ontológico do princípio racional conexo à evidência ideal ou factual para um estatuto ulterior ao de um real que antecede toda discriminação pensável. O que vimos ser destacado pelo próprio de Libera como a conexão do surgimento do raciocínio “secundum imaginationem” a um domínio da especulação interposto “pelo modo de consideração específica da potentia Dei absoluta”.
        É assim que também poderíamos situar a “complicatio” de Nicolau de Cusa, nomeando esse real como inexistência de opostos na mente de Deus, cuja apreensão por nós é intellectualiter, não rationaliter como o que corresponde à discriminação de opostos tendo por correlato a “explicatio”.
        Assim, Nicolau de Cusa opõe sua “matemática intelectual” à “matemática racional” de Euclides tanto quanto à “matemática sensível” do agrimensor. O método intellectualiter se rege pelo princípio da coincidência dos opostos, enquanto o que é rationaliter, se rege pelo princípio de não-contradição. Essa matemática do Cusano equivale a subverter a hierarquia aristotélica que inferiorizava o exercício da geometria em favor da definição, ofício da filosofia ou do que se chamava física apenas como um ramo da filosofia.
           Em todo caso, é oportuno lembrar que Galileu infirmou o principal da física aristotélica, refutando o princípio causal do movimento e lançando o princípio da inércia, justamente ao imaginar a trajetória de um corpo sem as condições de atrito.
            Além de Galileu, a heurística da imaginação está presente no contexto moderno da física associada à terminologia de Einstein. Isso foi especialmente ressaltado por Carl Sagan, no seu alentado estudo “Cosmos” : “A relatividade é rica em frases iniciando-se: Imaginemos... Einstein chamava este tipo de exercício de Gedankenexperiment, um experimento idealizado através do pensamento”.
           Conforme Einstein afirmou em Como vejo o mundo, uma teoria não é feita limitando-se pela experiência possível, como o resultado de dados. Ela é construída arbitrariamente no pensamento, lembrando aqui que em se tratando de física, a linguagem da construção é a matemática pura – podemos exemplificar a oportunidade dessa colocação, ao tempo de Einstein, pela situação marginalizada de Riemann num ambiente fortemente marcado pelo empirismo de Mach.
           Como reportado pelo biógrafo de Einstein: “In Riemann's geometry, parallel lines do not exist, the angles of a triangle do not add up to 180°, and perpendicculars to the same line converge”. Além disso, “In Riemann world the shortes lines joining any two points are not straight lines, but geodesics...” (R. Clarck, Einstein, the life and times, Avon books, formato pocket). Como se sabe, Einstein utilizou a geometria de Riemann para criar equações passíveis de descrever a estrutura do universo.
          No ambiente intelectual que se cristaliza no século XIV, conforme Bréhier, o que está em marcha é a progressiva denegação de princípios de saber que mantinham viável a totalização do real por via aristotélico-tomista. Mas isso não implicou, nesse interregno, a recusa da atribuição do Real criado por Deus.
           Inclusive as correntes de ceticismo e pirronismo como de Montaigne e Rabelais, Nettesheim e Talon são dirigidas contra o dogmatismo aristotélico, mas em prol da religião. Tudo parece permitir afirmar que são os motivos de fragmentação das visões totalizantes do cristianismo tipificado na “escolástica” que contribuem para o deslocamento da associação helênica do racional e do real pela interposição de um nível arbitrário, o impensável prévio à determinações do ser, onde o que se procura instalar não é apenas o “uno” neoplatônico, correlato por emanação ao ser, mas o aspecto subjetivo e por isso voluntarioso correspondendo à imagem do Deus especificamente cristão.
              A oposição de intellectualiter e rationaliter é o que podemos afirmar irredutível à oposição que Kant operou entre o transcendental e o empírico, e o que o pós-romantismo tematizou, contra Kant, em termos de “intuição intelectual”, a apreensão da subjetividade na posição do pensamento precisamente enquanto absoluto.
           O que autoriza essa dedução é que entre o intellectualiter e o rationalliter, não há uma oposição assim como da condição geral de possibilidade da objetividade a toda apreensão particular do objetivo. A complicatio que atingimos apenas “intelectualmente”, pode ser apresentada como o que Schelling conceituou em termos de “equipossibilidade”. Para ele localizando o absoluto, para Cusano a mente de Deus, nessa inserção não estão as ideias claras e distintas, mas a neutralidade de todas as oposições somente a partir das quais e a razão pode apreender alguma atribuição ideal.
          Ora, dessa neutralidade ou não-discernível genético, o que se desdobra não são imediatamente as ideias discerníveis geradas, mas as oposições, a duplicidade, que perfazem regiões de atribuição ideal como sistemas de saber ou de envolvimento prático na efetividade. O Romantismo desconstrói a contraposição dual como universal do pensamento. Essa afirmação permite-nos aproximar dois cenários importantes do seu entorno, aquele em que se trata especificamente da intelibibilidade dos sistemas, em Schelling; e onde se trata da filosofia de Antonio Pedro de Figueiredo.

2)

A Imaginação em Estética e Epistemologia

     Na espistemologia da representação, que abrange a habitualmente designada “filosofia tradicional” ou metafísica, a imaginação tem o mesmo estatuto ambíguo que o primitivo em relação ao civilizado, todo antes em relação a um depois que na verdade só é posto nessas condições para revelar-se um antes do antes que melhor se discerne no depois. O antes empírico se relega a derivado em relação a um depois somente na ordem empírica, mas fundamentalmente um antes (o fundamento, a anterioridade mesma de todo antes).
          Assim, nessa paralógica da representação, o civilizado é o lógico-racional, e o primitivo que lhe antecede é o pré-lógico, mas isso por que essencialmente o homem é racional e a humanidade desde os primórdios está destinada ao estado de civilização ocidental.
            Na filosofia tradicional caracterizada como paralógica da representação, rubricada como “história da filosofia” tout court, a imaginação é o antes do pensamento e o depois dos sentidos. Ambos, sentidos e imaginação estão pretéritos ao pensamento como ao entendimento ou razão. Eles lhe fornecem sua matéria desde que a percepção deve ser algo mais que registro caótico dos dados dos sentidos. O objeto do saber não é o percebido, nem o imaginado, mas o ser de ambos, o que só é estipulado, alcançado ou enunciável pelo pensamento ou razão.
           Certamente é superficial tratar “a imaginação”, em “história da filosofia”, como correlato ao verbete de um dicionário da língua. Um dicionário de filosofia mostraria, inversamente a um "sinônimo", como os vários filósofos discerniram conceitos possíveis de imaginação – mas constatamos que mantendo a abrangência tradicional, trata-se sempre da imaginação oposta ao pensamento assim como todo suplemento se opõe ao fundamento.
             Nessa linha tradicional, imaginação é aptidão a formar imagens das coisas, uma bola como um objeto redondo, por exemplo. Ela é suposta comum aos homens, mas não é por si só capaz de fornecer a verdade do que faz ver. Se alguém designa uma bola como essencialmente o que se usa no futebol, enquanto mais alguém objeta que o que se usa nesse esporte é apenas um tipo de bola, esse já é um exercício fora da imaginação e bem próprio do pensamento.
             Quanto à imaginação assim posicionada, os filósofos tradicionais devem pensar se vemos a bola como objeto redondo por que as bolas o são na realidade, ou por uma particularidade da nossa constituição humana, e explicar de que forma cada uma dessas possibilidades se efetivaria, o que também é opinião variável entre eles. Um filósofo pode  interpor a interpretação dos conhecimentos científicos de uma época, psicologia, fisiologia, etc., para embasar a sua escolha e a explicação dela, ou pode se opor às formas científicas de pesquisar esse assunto.
            Esse uso filosófico tradicional da noção de imaginação não está oposto a um uso cotidiano da palavra que poderíamos exemplificar pela resposta de Aysha no romance de Follet, ainda que esse uso cotidiano não precise conhecer o filosófico. O uso do termo “imaginação” assim exemplificado é apenas a consequência do situamento da imaginação como faculdade de formar imagens antes do exercício do pensamento ou entendimento, pois se ficássemos só nela, poderíamos misturar à imagem de bola qualquer outra imagem numa conexão ela mesma imaginada. Bolas poderiam ser pássaros por que voam quando lançadas. Nessa posição antes do pensamento, não haveria especificação da adequação ou impropriedade da associação qualquer de imagens.
           É importante notar que essa enformação filosófica tradicional da imaginação está relacionada até mesmo a um entendimento da arte poética. Se ela é boa, nos dizem habitualmente, é por que a liberdade imaginativa das conexões sem especificidade intelectual está sempre de algum modo regrada por uma conexão autorizada pelo pensamento e já conhecida. É generalizadamente uma metáfora, ou particularmente alguma figura de estilo, tropo que mantém uma relação óbvia com alguma associação legítima do ponto de vista do pensamento.
           Antes da “arte moderna”, por definição “não-tradicional”, a ambiguidade não era o que se procurava num poema senão para desqualificá-lo.  Quando em Macbeth, Shakespeare escreve na cena II do segundo ato: “Sleep that knips up the ravell's sleave of care”, William Alston (Filosofia da linguagem, ed. Zahar)   deduz que“o sono que conserta a manga desfiada dos cuidados” é uma metáfora do “efeito reparador do sono” que assim está sendo referenciado tão bem quanto se usássemos esta expressão em vez daquela. Mas com um excesso de talento poético tal que compreendemos por meio do verso de Shakespeare de que modo o efeito do sono é reparador. “Pense em uma mulher consertando a manga desfiada de uma camisola e você terá um ícone da ação de dormir de uma pessoa cuja vida está cheia de preocupações”.
          Esse estudo de Alston é do período contemporâneo, de inícios dos “sixties”, exemplificando o que podemos afirmar como o fato de que não obstante a “arte moderna” ter forçado a inserir a ambiguidade na consideração da linguagem poética como algo inerente a ela, na verdade isso não implica que está geralmente aceito que essa linguagem é essencialmente ambígua.
           Não só o Realismo, como uma evitação da ambiguidade, mantém a noção tradicional de imaginação como algo que só tem sentido por sua relação ao pensamento, pois a ambiguidade pode ser aceita apenas como um meio pelo qual a poesia induz ao leitor engajar-se no exercício de projetar uma conexão legítima possível para um verso enigmático. Se o poeta for além disso e registrar um verso que não fornece qualquer ensejo a esse exercício, muito do público o considera uma coisa inútil e esses intérpretes ou seguem o público ou deduzem que o verso foi feito propositadamente para espantar – quando não ocorre que ambos, público e crítica, concordem em tachar o poeta de louco.
          Isso é assim também em artes plásticas ou música. O romântico Turner foi especialmente ridicularizado pelos jornalistas ingleses, que nunca haviam tido muito boa vontade com ele, quando se dedicou a explorar a qualidade plástica do amarelo, algo sem conexão aparente com alguma técnica de reprodução de cenas reais. As experimentações dos compostores modernistas como Villa-Lobos nunca foram aceitas pelo grande público, até as técnicas modernistas estarem integradas no Rock (progressivo, experimental, etc.) ao produzir-se um público cujas atitudes, aspirações e mentalidade não-tradicionais se harmonizavam com as dos artistas. Já o pop-rock desenvolve uma linha “neo-romantica” desde os anos setenta, quando se lançou com artistas como Linda Ronstadt.

           O pós-kantismo, ou pensamento romântico pode ter sua história iniciando-se como uma tomada de posição a propósito de uma polêmica sobre a imaginação, sendo a parte escolhida por ele inteiramente inesperada no contexto em que a polêmica surgiu – lembrando que o romantismo é a pioneira forma auto-designada de “arte-moderna” e assim explicitamente voltada contra o cânon tradicional. Nesse momento crucial tratou-se de tomar partido contra Kant a favor de um místico, Swedenborg, mas não por alguma profissão de fé, e sim como numa autêntica opção filosófica.
            Essa polêmica surge com um ar não polêmico, mais uma objeção kantiana movida a algo tradicionalmente considerado absurdo, tanto mais considerado assim num entorno de época como o Iluminismo (séc. XVIII). Inesperadamente, aproximando-se o século XIX, os ânimos se encontram acirrados contra a objeção. Mas ela estava realmente ancorada num pressuposto que para Kant, o objetor, era consenso presente obtido pela remodelação que o presente havia permitido operar em relação ao que nenhum passado podia ter deixado de ver de um certo modo, ainda que até aqui o enunciasse de outros modos. Consenso a propósito daquela divisão tradicional entre imaginação e pensamento, que sua filosofia havia conservado, não obstante tematizar a imaginação de um modo próprio.
             Assim, Kant havia liberado a imaginação na arte, mas definido a arte como o oposto da ciência na medida em que na arte não podia ser o caso do pensamento (conceito), e se fosse o caso a obra de arte incorreria no desagrado do público, pois o gosto suscitado pela arte ele atribuiu ao seu caráter de pura imaginação. No entanto, essa imaginação seria pura apenas por que colocando o entendimento a seu serviço, invertendo a hierarquia da ciência. Kant não pensava realmente na possibilidade de uma arte como a do abstracionismo ou do surrealismo. Ele manteve a visão metafórica da linguagem poética.
          Inversamente, se o pós-kantismo é um ambiente “romântico”, na transição ao século XIX, é por que repentinamente, desde o marco da passagem de século, a posição pró-Swedenborg se torna estabilizada como referencial histórico, enquanto a arte romântica visa a imaginação de um modo não-kantiano, pois toda divisão que Kant opera entre a razão intelectiva, prática e criativa é a que o romantismo critica acerbamente.
        A polêmica a propósito de Swdenborg tem por objeto precisamente o estatuto filosófico da imaginação. Kant designa “fanáticos” aqueles que seguindo Swendenborg, não querem distinguir a fantasia da realidade, para considerar igualmente real o que é visto e está condizente com o entendimento, e o que é visto ou suposto visto por esse místico, mas não está, é apenas produto da imaginação exacerbada do louco, ou não controlada pelo pensamento, do insensato.
        Swendenborg havia escrito estudos de estética como “Ludus Heliconus” e “Camoena Borea” , entre outros estudos da natureza, antes de se tornar visionário, e em seguida a isso seus livros se lançaram como numerosos relatos dessas experiências místicas, à exemplo do Diarium spirituale e do Drömboken (livro dos sonhos), e tratados visando reformas do cristianismo, como Arcania Coelestia. Em 1782 parte de sua obra foi vertida ao francês por Pernety, que dela organizou uma seita com pelo menos uma centena de adeptos em Avignon, operando a fusão das ideias de Swedenborg e Bohéme a que outros swedenborgistas se opuseram para depurar somente as concepções originais do seu mestre.
      “Schwarmerey” é o termo alemão que Kant usou para ridicularizar Swedenborg, sendo traduzida normalmente por “fanatismo” ou “entusiasmo”, extensível a “delírio”. Ao usar esse termo, Kant está negando que Swedenborg tenha produzido obra no campo da filosofia. Schwarmerey está assim oposto a Aufklarung ( filosofia do Iluminismo). A estratégia de Kant se torna compreensível se lembrarmos que “Iluminismo” significa a filosofia materialista e racional do século XVIII, radicalmente avessa à religiões, que esses filósofos não distinguiam de superstições místicas, mas os movimentos místicos dessa época haviam se intitulado seitas de “iluminados”. Kant está operando uma oposição entre o iluminado místico e o filósofo iluminista, e para isso reservou schwarmerey como termo para o iluminado, que o colocava fora do jogo do pensamento. Ele estava negando que por via não filosófica ou racional, se tenha conhecimento efetivo das coisas, em vez de simples “delírio” de coisas que não existem.
        No entanto, o termo “schwarmerey” ganhou ressonância inesperada pelo kantismo, uma vez que podendo estar designando um campo específico como “misticismo”, resulta não imediatamente palavra pejorativa devido ao fato de que as seitas místicas se tornaram sempre mais populares em vez de, como supunham os filósofos, perder importância ao longo do “século da razão” (sec. XVIII). Seria um rótulo para algo tornado autônomo, quando até então era indistinto ou apenas uma opção pessoal.
           Mas de fato, a acusação de Enthusiast é tradicional no cristianismo contra os suspeitos de heresias ou feitiçarias, conexa a Phantast – Jacob Bohéme, em inicios do século XVII, já havia sido acusado desse modo por seus contemporâneos, conforme Alexandrian (História da filosofia oculta, edições 70). O rótulo schwarmerey revelou-se aplicável a um domínio novo na cultura, liberado tanto da filosofia quanto da religião.
          É curioso que Kant tenha reservado um lugar para a religião no contexto prático, como um recurso ético, mas não para o misticismo que ele então, destacando-se dos iluministas típicos, vê também como algo autônomo, se bem que num estatuto pejorativo.
         Como escritor que hoje rotularíamos “esotérico” ou “místico”, Swedenborg inova por ampliar muito os motivos fantásticos na sua experiência mística, e seus adeptos devem, como ele, considerá-las reais. Borges, o célebre escritor modernista, é ainda tributário desse imaginário swedenborgiano, saudando o místico que conversa com anjos na rua, faz viagens interplanetárias e descreve os habitantes desses lugares, ou é visitado por eles e até habitado por vezes, por alguns desses seres, no seu próprio corpo.
          Ele não é apenas um iluminado como Bohéme, é um visionário que no entanto, não obtém revelações de “sabedoria” em suas visões. Elas são experiências do absurdo, do impossível para o senso comum e a razão, o que elas revelam só tem por conteúdo aquilo que elas mostram, aquilo de que se constituem como imagens – como são os habitantes dos outros planetas pode não implicar mais do que o espanto perante a sua estranheza que nada tem a ver com a vida cotidiana ou com o que quer que fosse de interesse dos homens.
          O conhecimento esotérico pode abranger o saber de certas coincidências que funcionam na prática, como quando certo número se revela portador de sorte para alguém por que sempre esse número está associado a circunstâncias felizes, mas enquanto coincidências continuam inexplicáveis à exemplo das superstições populares: associa-se certa mistura de plantas a um efeito desejado, mas não se sabe por que essa mistura atua esse efeito.
           Até aqui, o místico se revestia de uma capa de sábio apenas por conhecer tais conexões, confundia-se com o cientista ou o filósofo, mas com Swendenborg, elas apenas são outros tantos indícios do absurdo da realidade, o que por outro lado não impede que se tenha fé em Deus e que se tente compreender as Escrituras Sagradas (a “Bíblia”), ainda que obviamente não como a religião oficial as entende, já que no dogma o absurdo está fora de cogitação, há apenas o milagre que não suscita nenhuma experiência pessoal de teor fantástico. O Romantismo explora particularmente a ironia dessa concepção dogmática, pois é claro que o milagre é tão “fantástico” quanto uma visão absurda do místico.
          O essencial é que Kant usa Swedenborg para ilustrar a sua própria oposição de imaginação e entendimento. O transcendental kantiano, a revolução coperniciana da filosofia que instalou na Razão a condição necessária de toda objetividade já discernível no modo mesmo como os objetos são por nós intuídos, não pode ser confundido com uma imaginação criadora.
           A imaginação, tanto quanto a percepção, já estão regradas pela razão no kantismo, mas elas não são entendimento, não são pensamento nesse sentido de discernimento inteligível daquilo que é dado em termos de objeto. Nós não vemos bolas como pássaros, nem vemos algo que não possamos discernir do seu movimento no ar ao ser lançado, mas para que a conexão entre bola e pássaro seja definível como imprópria ou metafórica, enquanto a restrição de bola como objeto redondo é conexão própria e legítima, nós temos que exercer algo mais que são as relações determinadas pelo entendimento (categorias).
           Essas relações, para Kant, não são criação de alguém em particular, nem do homem como um ser autônomo, mas da Razão (transcendental) enquanto condição de possibilidade de uma experiência qualquer de sentido. Presume-se que para além da razão, a coisa em si seja como a razão apresenta, mas essa questão nunca poderá ser resolvida conforme Kant, por outro lado sendo inútil, já que objetividade implica que jamais a coisa em si se comportará diversamente do modo como a razão pré-ordena a experiência.
           Ora, a irredutibilidade cultural coloca a esse transcendental kantiano um problema que não se limita ao da coisa em si. Isso ainda é uma polêmica atual. Muito do estudo da lógica está sendo interceptado pela filosofia da linguagem, por que o que antes era uma concepção considerada evidente a propósito da definição, na modernidade coloca problemas que chegam a ser considerados insolúveis. Os manuais de lógica tradicionais, como de Liard e Maritain não tratam da definição como algo que deve ser esclarecido por si, enquanto os mais recentes, como o de I. Copy (Introdução à lógica, ed, mestre jou), tem um capítulo reservado à teoria da definição.
           No terreno comum entre lógica e filosofia da linguagem, as dificuldades à teoria da definição se tornam inextrincáveis, e ou se apela a uma solução dogmática, ou como F. Waismann, postula-se uma “textura aberta” da linguagem, na qual as definições dos termos são apenas relativas a contextos, não afirmáveis como uma propriedade da linguagem em si que em vez de ser suposta como composta por significados fundamentais, é pensada como geração de contextos em que os termos vem a ser efetuados como portadores de sentido.
            O caráter da sociedade moderno-ocidental, com sua legislação “in progress” depende dessa relativização em algum nível, enquanto que por outro lado a ciência como referencial da razão que constitui a sociedade enquanto moderna, tende a induzir renormalizações de algum modo, mesmo quando na própria ciência as teorias já são pensadas como geração de contextos desde Goedel.
           Há algum tempo, a legislação de uma cidade nos Eua impôs que “iates” não são “veículos motorizados”, para que pudesse ser cobrada a tributação de 3% para iates, quando veículos motorizados são tributados somente em 1%., conforme o exemplo de Copy de um caráter utilitário da definição. Mas ocorre, como W. Alston (Filosofia da linguagem, ed. Zahar), aceitar-se a possibilidade de indeterminação de Waismann e como vimos acima, continuar-se a pressupor que há sentidos próprio e impróprio com relações aos termos, o que não obstante ser uma posição teórica obviamente ambígua, é algo muito frequente na atualidade e característica dos adeptos da teoria dos atos de fala, de Austin.
           Assim, é quando se trata da irredutibilidade cultural que ficam mais comprometidas as tentativas de manter o dogma da universalidade da razão ocidental. Esse problema é agudamente tematizado por Derrida ( Limited Inc., papirus editora), em que polemiza com J. Searle, adepto de Austin. A posição de Searle é, aliás, exemplarmente performatizada por Alston, que não o cita, apenas repete algo decorrente da teoria de Austin.
          Derrida se mostra exímio na desconstrução da noção de “propriedade”, “anterioridade”, “primeiridade” do sentido de um termo, defendida por eles, e para estabelecimento de que desde Austin se predica o estatuto metafórico da arte como “parasita” em relação ao sentido denotativo do cotidiano ou da ciência.
             Derrida mostra o limite teórico dessa concepção como sendo o que podemos designar uma petição de princípio – falácia que consiste em supor como solução aquilo que é apenas o enunciado do problema.
Pois, na verdade, quando se pensa que o ato de dispor significados próprios é o que primeiro temos que compreender quando se trata de linguagem, para depois colocar a questão de como é que se fazem derivações metafóricas, já se está subentendendo haver um critério pelo qual o que é próprio e o que não é são distinguíveis na linguagem. Mas esse critério é o que está sendo dito ser liberado pela teoria desde que ela seja a da linguagem compreendida como geração de significados próprios, o que está precisamente em questão se é ou não. Obviamente há petição de princípio, e torna-se jocoso o modo como Searle, na sua crítica a Derrida, só faz repetir essa mesma falácia, cada vez com maior veemência, sem perceber do que se trata.
           Em vez de um critério de primeiridade ou propriedade, ou seja, em vez de pressupor o significado mas deixar intematizado esse caráter do pressuposto, Derrida institui o conceito de “raiz dupla” da linguagem, pelo que seu funcionamento tem por efeito a duplicidade do referenciado e da referência, de algo metaforizado e da metáfora. Não se pode extirpar qualquer dos dois sem com isso denegar também o outro, de modo que o fundamento não o é fora do mecanismo significante em que ele institui algo como suplemento. E institui também o conceito de “ lei da iterabilidade” , que não é contudo transcendental e sim o modo de sua construção, por onde a linguagem é repetição de estruturas, como do significante, em contextos heterogêneos.
        O significante não é algo unívoco oposto ao significado, é algo dado como “brisura” (“briser",  refratar entre a grafia e a ordem de leitura) algo que não é presença de objeto, mas movência, trajeto, remissão, re-ferência, etc. O significante é sua aptidão ao  deslocamento ou repetição num outro cenário, sob a aparência da  fixidez ou repetição como o mesmo signo, assim como a letra que parece um objeto fixo, mas na realidade só existe para ser deslocada ao infinito na construção das palavras. Derrida não deixa de explorar a conexão entre as concepções de primeiridade na línguagem e as operações de dominação política, pois, de fato, não seria possível o preconceito, as hierarquias axiológicas, ou a subalternação de outrem, sem essa concepção de algo primeiro ou mais próprio. O trecho da demonstração desses conceitos se encontra no Limited inc., como resposta à “primeira objeção” de Searle ( pag, 123 e seguintes, na edição da Papirus).

           Aqui poderíamos ilustrar a importância da liberação e crítica do signo  na sua conexão às ciências da cultura, que como sabemos, surge com o Romantismo onde a duplicidade do sentido, pelo fato dele ser cultural e historicizado, é a novidade teórica.
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